JARDIM DOS ENCONTROS
Lugar de encontrar palavras, devaneios, imagens e sonhos plantados a esmo.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Da série HISTÓRIAS DE PÉ DE OUVIDO: Baianidades construídas

Foi assim:
Eles se conheceram num grupo de jovens da Igreja Católica e casaram. Ainda no Paraná. Ela grávida de uma criança que viria a ser um homem dos mais inteligentes já vistos. Eles num pacto de respeito mútuo que perdurou e se atualizou por dezenas de anos.
Ele prestou um concurso e os 3 atravessaram o país para viverem a Bahia da década de 1970. Choque de cultura alimentado por preconceitos assimilados pelo mundo todo.
Ela se viu muito tempo sozinha enquanto ele moldava na cidade vizinha os sólidos tijolos de uma vida estruturada.
Ele se viu perdido em referências que não eram as dele.
Eles recusaram uma cultura que lhes parecia selvagem e desorganizada demais. Ainda que bonita, em certa medida.
Respeito sim. Assimilação, no entanto, preferiram não.
Veio então um outro pequeno menino, inteligente como o primeiro.
Veio por fim a menina-quase-sem-nome, quando tudo já parecia mais calmo. Sorte dela!
A identidade deles, dessa família, residia a mais de dois mil quilômetros de distância do sol e calor e barulho e cheiros e sabores da terra em que vieram se alocar. Eles eram uma ilha flutuante, que retornava as origens a cada ano para se lembrarem quem eram de verdade.
Anos de conflito em silêncio quebrado por som de choro quando o terminal de S. Joaquim se anunciava no final da estrada de volta.
Dos 5 habitantes da ilha, foi ela que nasceu com mais pistas da brasilidade escondida sob verniz colonizador. Boca, cabelo, seios, olhos, bunda; mistura de negro&índio&europeu irrecorrível.
Nenhum padrão dado pelo invasor receberia bem tanta promiscuidade daqueles genes. E ela notou isso bem cedo...
(...)
Ela cresceu e teve sorte de entender, através de seus entes de ilha, a importância da boa convivência com a diversidade.
Cor, raça, religião, função social, naturalidade, preferências musicais ou gastronômicas nunca foram barreira para sua fome de novidade. Vontade de amigos. Medo de isolamento em ilha pequena demais sob os pés.
E foi desbravadora solitária das terras dos estrangeiros que os cercavam. Eles eram os donos da terra, afinal! Política-de-boa-vizinhança aplicada por anos a fio. Provou de tudo. Menina-caraíba, em casa de outrem, sem medo jamais do escalpe. E sempre bem-recebida na volta pra sua taba, mesmo quando transfigurada em Menina-com-pele-de-cor.
Para ela era questão de encontrar iguais, para sobreviver quando não tivesse mais os seus, que a entendiam mesmo na máxima diferença. Muitos sabores, é verdade, lhe pareciam acres demais. Crus demais. Mas aceitava o que lhe colocassem no prato sem fazer cara feia. Estratégia de batalha e prevenção para os dias de tempestades que a vida adulta sempre traz no ventre.
Em dado momento (ai, que loucura é a adolescência!) os passeios para as terras de outros se reverteram em lutas em sua própria terra. Expedições de observação sempre foram bem vistas, mas a assimilação e compartilhamento de hábitos alheios não eram recomendados.
Mas a carne que crescia por baixo do fino verniz colonizador era tão mais forte do que toda vontade de se ajustar à regra... E compreender isso fez tudo o que ainda lhe cobria virar apenas pó inútil sobre a pele.
E ela se viu nua. E sozinha.
E os cabelos se viram mais fortes do que os das supostas semelhantes de taba. E a boca mais grossa. E a voz mais alta. E as curvas mais acentuadas.
Mas, ao mesmo tempo, na casa do vizinho (que na verdade era o dono da terra toda que contornava sua ilha) suas nuances pareciam demasiado delicadas. E ali ela não era uma semelhante. Ela era apenas uma visita.
E chegou a hora de se entender filha de uma terra-do-meio. Filha da fronteira de terras. Fruto do encontro e da mistura. Do limite. Do entre.
E percebeu que passear sozinhas em terras hostis lhe ajudava a encontrar-se consigo.
Veio então o sonhado passeio na terra dos ancestrais mais brancos. La Tour Eiffel e redondezas eram desejo ninado por anos. Ela achava que falar a língua e travestir-se em local serviria de algo.
Tolinha...
E essa expedição fez ela conhecer uma dor diferente. Após renegar sutilmente o entorno de sua ilha ela se tornara um ente sem referências de verdade. Ela não poderia nunca se confundir com as locais de pele rosada. Era apenas uma visitante vinda de uma terra sobre a qual nada sabia. Da qual pouco consumia, devaneando ilusões de fazer parte da História dos colonizadores do além-mar.
Essa Bahia que você cita eu não conheço. E esta terra que eu piso agora não me reconhece.
Dor de não ter lugar para se pousar. Planta sem raiz. Estrangeiro sem passado.
Solidão de não ser de lugar nenhum.
(...)
Aprendeu então a ser bicho que leva a casa nas costas porque nem sempre encontrará a porta aberta na terra em que visitar. E para ter sua casa sobre os ombros o primeiro passo era se alimentar de sua própria terra-natal, para trocar pedaços de sua vivência quando visitasse a morada dos outros. Se encher de presentes locais para barganhar em terras estranhas.
O espelho pelo cocar.
E para isso era vital aprender a sua própria morada. E as expedições antropológicas recomeçaram.
Vestes, cabelos, dança, palavras, história, geografias, cores, sons. O que for da terra que pisa desde criança será seu também. Está decidida a costurar pedaços dessa Bahia na sua carne, para acalentar o espírito na visita a solos alheios. Porque ela vai partir um dia, e precisa estar preparada para ser estrangeira por longos tempos novamente.
Se é ou não uma assimilação artificial e forçada de um entorno que nunca consumiu naturalmente, ah! isso é outra história..
Mas o fato é que tem se aplicado no exercício de estender os limites de sua ilha por sobre a terra-Brasil que a cerca desde sempre.

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