JARDIM DOS ENCONTROS
Lugar de encontrar palavras, devaneios, imagens e sonhos plantados a esmo.

segunda-feira, 28 de março de 2011

Da série ESCRITOS POÉTICOS: Mais de Ana Paula

VIAGEM

Preparei-te na pedra da casa / Asas do passaro Kalulu /Com pedaços de árvores destroçadas pelos raios / E resina quente. // Chamei a metade gémea do espírito / Para te passar remédios / Da cabeça até aos pés. // No fundo de meu corpo perfeito / Escondi / Pedaços de argila e feitiços fortes. // Em cada uma das doze cabaças da origem / Deitei o vinho dos votos / Um pano novo da costa / Três missangas azuis / E cera da colmeia menor / Todos os dias conservei aceso o fogo sagrado / Na hora dos fantasmas / O vento diz-me a tua voz / É a voz das viagens / Sem regresso.




ENTRE OS LAGOS

Esperei-te do nascer ao pôr do sol / E não vinhas, amado. // Mudaram de cor as tranças do meu cabelo / E não vinhas, amado. // Limpei a casa, o cercado / Fui enchendo de milho o silo maior do terreiro / Balancei ao vento a cabaça da amanteiga / E não vinhas, amado. // Chamei os bois pelo nome / Todos me responderam, amado. // Só tua voz se perdeu, amado, / Para lá da curva do rio / Depois da montanha sagrada / Entre os lagos.

Da série LEMBRANÇAS PODEROSAS: Ana Paula Tavares

Foi na época d'O Contêiner que me deparei com essa poeta. Ana Paula Tavares é angolana, e na nossa busca por referências para compor nossa África imagética e não-folclórica tão desejada, vasculhamos a produção de poetas africanos antigos e contemporâneos. 

É importante que se diga: produz-se muita coisa linda & poderosa & forte naquele continente, tido por nós ainda como lugar muito distante desta terra brasilis. Entre tudo que lemos, a poesia Estrangeiro daquela poeta me marcou fundo; Buranga interpretando seus versos durante o espetáculo era para mim o momento mais emocionante da peça. Mais de uma vez eu chorei ouvindo aquelas palavras, que se misturavam em dado momento às palavras do próprio Buranga, ele mesmo um estrangeiro, exilado de sua terra por falta de opção. 

Aquela forma de vazio total, da ausência completa de caminhos para dentro de casa, que invariavelmente lança para muito longe de tudo o que conhecemos como nosso.

Simplesmente lindo.



ESTRANGEIRO

Estrangeiro,
teus passos alargam o fosso
em volta do cercado da casa antiga
está aceso o fogo
nos sítios do costume
e tu moves-te por dentro do frio
estrangeiro,
o pano branco na tua cabeça
anuncia a morte
de minha alma gêmea
meu irmão meu noivo
o filho muito amado de sua mãe
o que portava no peito
o colar de missangas
e fios de meu cabelo
estrangeiro,
a tua voz
é um ruído surdo
um murmúrio atento
estrangeiro,
com a tua presença
a minha dança não correu
a manteiga passou
o leite cresceu azedo pelo chão
a vaca mansa de estrela na testa
não entrou no sambo
a bezerra pequena varreu a noite de gritos
estrangeiro
ontem não nasceu ninguém de ehumbo
e a lua estava alta e nova
o velho que sofre
não conseguiu morrer
estrangeiro,
afasta de mim
teus passos perdidos
e a maldição.

terça-feira, 15 de março de 2011

Da série SEGREDOS E SUSSURROS: Alucinações musicais

Palavras gritadas às vezes não param de ecoar dentro da gente, né?!

Se vem com os adicionais de fábrica 'raiva' e 'desejo de machucar' é quase impossível de se livrar de reverber tão pesado sem uns dias de duro sofrimento.

O pior é saber que não tem nem como voltar ao fornecedor e pedir-para-tirar-porque-ele-entendeu-errado-o-meu-pedido. Afinal, os idiomas têm sido outros e nem sei mais cadê meu dicionário.

(...)

Solução? Paciência com as alucinações sonoras instaladas dentro de minha cabeça. Hora dessas elas vão embora... pelo menos assim espero.

terça-feira, 8 de março de 2011

Da série MENSAGEM NA GARRAFA: Para você

Eu te amo. 
E você sabe disto.


E é muito difícil às vezes. 
E você sabe.


E não sei o que fazer com o que sinto. 
E você sabe.


E não depende de só um de nós. 
E a gente já sabe.


E certamente seria melhor ficarmos separados daqui por diante.
E eu sei disso.


E você me fez dizer coisas que há muito eu sequer pensava que iria repetir.
E (acho) que você sabe.


E se eu fico é porque quando é bom, é muito, muito bom.
E isso eu te disse.


E tem sido muitas vezes pesado e ruim.
E disso já sabemos, e falamos.


E cansei de chorar.
E você percebe.


E eu preciso sair por aquela porta, logo, já!
Mas é tão difícil...


E somos A diferença, mas no fundo parecidos em pontos que ninguém pode imaginar.
E você disso talvez não saiba.


E eu, quando sair, vou sentar na porta da rua e chorar, sozinha, porque não é um outro alguém que vai me fazer sorrir.
E disso eu preciso que você saiba.


E, bem... eu ainda te amo.
(...)
Escrevo aqui para que você não esqueça na próxima manhã.