JARDIM DOS ENCONTROS
Lugar de encontrar palavras, devaneios, imagens e sonhos plantados a esmo.

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Da série A MULHER NO ESPELHO: Contabilidade

Lembro de um dia acordar no meio da noite e ver minha mãe ao pé da cama contando meus incontáveis hematomas. Sempre fui de ficar marcada e a surpreendente cifra de 87 arroxeados na minha pele tão branca não foram, de fato, surpresa para mim.

Muitas noites passaram e aquela cena nunca se repetiu, mas as marcas se acumularam num total que perdi de vista há tanto tempo... MarcaS, num plural eterno e repetitivo.

(...)

Ao encontrar um recente afeto, noto que ele nota tão rápido minha imensa mancha roxa na perna que termino por ficar completamente sem-graça. E mesmo que aquilo vire piada no segundo seguinte, a vontade que tenho é de dar um salto e confessar a ele e a todos: aquelas marcas vêm de dentro! 

Mas eu me calo, meio envergonhada, porque é cedo demais para exibir-lhe as entranhas.

(...)

Os encontros são muitos na vida; profusões diárias de trocas de informações, de desejos, de experiências, de sorrisos, de ações. Adoro gente, mesmo quando igualmente detesto cada um. Eu gosto, realmente, de me embolar na vivência de alguém e ver daquele contato nascer uma nova camada de entendimento das coisas à minha volta. Num mundo que comporta tanta diversidade, não haveria de ser possível nem mesmo a um incansável Odisseu a descoberta de todas as terras que se escondem do lado de dentro daqueles que encontramos. Por isso eu gosto tanto de abrir minhas portas, meus olhos&boca&ouvidos e deixar o outro desbravar os meus continentes desconhecidos para, em seguida, convidar-me a desbravar-lhe os seus. Adoro encontros. Adoro.

E depois de tantos caminhos reais e imaginários desbravados desde sempre, eis que me encontro com um desconhecido que morava tão perto que nunca poderia prever-lhe a existência. Como tão perto e tão longe?, era a única questão que martelava a cabeça nos primeiros instantes. Mas fui assim mesmo, com a pergunta ecoando dentro do juízo, e terminei por abrir-lhe minhas portas, deixei-o entrar, sair, perguntar, revistar, rir, descobrir, levar o que quisesse. Foi tudo tão rápido, e tão simples, e com um interesse tão sincero que, ao invés de tranquila, fiquei honestamente apavorada. Adorando aquele turista em minhas terras fiz a mais boba das escolhas e, ao invés de relaxar, achei de me distrair consultando o antigo livro de assinaturas com a lista de todos os recentes visitantes. (!) Pulsava naquela caixa de lembranças tanta confusão e desafeto e medo e angústia e dor que quase bradei ao distraído visitante que fosse embora antes de incluir ali o seu nome. Por um instante o quis longe de mim, mas uma risada no ar terminou por me tranquilizar pelo menos até o fim da visita.

E, ufa, foi tudo ótimo. E eu me comportei como uma boa anfitriã. E me despedi na porta. E o vi partir. E fui para frente do espelho. E me despi. E encarei meu corpo. E ali vi tantas marcas que não haveria tempo suficiente  numa vida para contar todas elas. E me horrorizei de tal modo com aquela visão que chorei de-ses-pe-ra-da. Notei enfim o quão machucada eu estou, a ponto de não reconhecer a tranquilidade quando ela me bate à porta. Perdi os olhos para o afeto, desconheço a doçura, fiquei surda para o silêncio. Emburreci da alma, de certo modo.

E me vi tão sensível ali, sozinha, com aqueles hematomas me cobrindo inteira que senti vergonha. Mil vezes mais do que quando ele apontou-me a imensa marca na coxa.

Em geral eu tenho apego a minhas cicatrizes, porque elas são parte do eu sou. São minha construção mais intrínseca, totalmente inalienáveis. MINHAS. Mas, de algum modo, o que foi trazido pelos olhos do moço-bonito é da matéria da tranquilidade, da paz, da calmaria, da maciez. E aquela ranhura toda sobre mim terminou por perder o sentido e me fez sentir excessiva de alguma forma.

Me perdi, enfim.

Estou com vontade de correr, mas fico. Depois de muito, muito, muito tempo, acho que é melhor me manter onde estou e com as portas abertas a esta ilustre visita. Apavorada, admito, mas disposta a acolher essa imensa novidade.

(...)

Eu, ser do grito, começo a desejar ser alguém do sussurro. 


segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Da série VERBOS QUE MUDAM TUDO: Contemplar e encontrar

É como um trem: ansiedade imensa para conseguir comprar o passe, marcar um bom assento, encontrar a plataforma correta, chegar na hora agendada... Pânico quase sempre.

Mas assim que as malas são colocadas no bagageiro e a cabeça se acomoda junto à janela, a tranquilidade toma conta de tudo, e não resta nada que não a contemplação sadia do caminho. Adoro este momento, porque minha voz se torna calma e eu viro porto e deixo de ser nau. E meu sorriso é mais brando e meu olho é mais bonito e tudo se torna mais simples em meu entorno.

Sensações diametralmente opostas. Agonia que começa com a loucura da busca, o medo da ausência, mas se desfaz na primeira curva da estrada e dá lugar a uma das coisas das melhores que existem em mim. Às vezes me distraio mas jamais perco de vista a estação correta da minha descida.

(...)

É assim. Bons encontros me causam isso. Espero que eu nunca perca o prazer de contemplar a paisagem lá fora e os assuntos aqui de dentro.

sexta-feira, 14 de setembro de 2012

Da série SEGREDOS AO VENTO: Moda Primavera-Verão



















Interesse & Desinteresse; minha peça double face favorita.

quinta-feira, 6 de setembro de 2012

Direto do desktop


Da série SEGREDOS AO VENTO: Polaridade

(...)

Demoro a encontrar a palavra certa. Na verdade as palavras certas, no plural, tão plural quanto os encontros vividos. Muitos, muitos, talvez até além do que minha capacidade de renovação poderia dar conta. Mas estive lá, presente, e deixei cada encontro entrar, cada afeto se instalar, cada coisa se posicionar e se espalhar e performar e se exibir no máximo. Até o momento que disse que era a hora da partida, e pedi delicadamente que se retirassem.

E alguns foram sem relutar, outros insistem em retornar e deixar bilhetes na porta quando a encontram fechada. É natural; eu faria o mesmo. E respeito os tempos de todos, inclusive os meus, então não há qualquer problema em descolar os recados da entrada e posicioná-los em um cantinho novo da memória. E foi.

E vinha assim alternando momentos de desinteresse sincero e desconfiança profunda. Pelo menos até agora pouco. Alguns encontros simplesmente não me demoviam. Outros, me anunciavam a catástrofe já no momento da entrada. Se fosse qualquer pessoa mais saudável do juízo em meu lugar, mais tranquila per si, menos ariana, diria a qualquer um dos visitantes recentes que não viesse mais, que não poderia recebê-los, que estava ocupada demais. Mas  ao meu olhar a beleza do ser humano é essa mesmo: a riqueza de detalhes bons e ruins. E ela só pode ser vista depois de ser retirada a superficial camada de verniz que a gente teima em colocar sobre a pele. Para isso é necessário se deter um tiquinho que seja sobre a carne e curti-la até sangrar um pouco, mostrar uma nesga dos nervos, revelar-se nua. Essa parte é a mais bonita, mas qualquer erro no manuseio da faca do curtume pode causar danos profundos. Por isso a delicadeza precisa ficar sempre à mão, guiando os gestos e orientando o ritmo da coisa toda. 

Nesse processo aprendi a silenciar. Assim como não há como se perguntar ao  couro se a faca está a machucá-lo, não se pergunta a um afeto se ele traz na bagagem traumas, dúvidas, desconfianças ou expectativas malucas. Não; isso não se pergunta. É preciso então trazer a delicadeza próxima às orelhas e usá-la como concha vazia a sussurrar a memória do mar se se quiser entender o outro que se coloca à sua frente. 

Sou boa com a faca mas ainda não muito com a concha, admito. Estou aprendendo a passos meio lentos, mas sigo. 

(...)

Pressinto que os próximos dias se converterão em duros treinamentos de escuta. Vamos acompanhar...