JARDIM DOS ENCONTROS
Lugar de encontrar palavras, devaneios, imagens e sonhos plantados a esmo.

quinta-feira, 4 de abril de 2013

Da série VIDA DE TODO DIA: A segunda abolição



Cresci com elas, sempre com elas por perto. Mas o senso moral e o respeito ao outro de minha mãe e meu pai são dessas coisas que fariam morrer de orgulho qualquer herdeiro, o que nos nos permitiu ser educados dentro de um caminho que incluía compreensão das relações sociais mais complexas.

Renilda, Gal e Conça sempre foram trabalhadoras queridas e respeitadas em casa mas nunca deixaram de ser exatamente isso: tra-ba-lha-do-ras, que tinham seus direitos respeitados efetivamente. Eu e meus irmãos sempre brincávamos que Conça era invariavelmente mais bem-tratada do que a gente, porque meu pai nunca falava alto com ela, nem se estressava, sempre pedia por favor e compreendia quando ela não podia cumprir uma tarefa que ele indicasse. E ela ainda ganhava um salário dobrado, com todos os direitos e, ainda por cima, era a gente que tinha que ir pra fila do INPS pagar as guias de recolhimento do salário dela. Ô vida dura essa de filho de s. Rodolfo...

Meu pai e minha mãe são assalariados que construíram um patrimônio graças a uma rotina diária de trabalho, e sempre me pareceu óbvio que ser empregado não era nada pior, em qualquer categoria que estivéssemos. Isso terminou imprimindo em mim um senso de responsabilidade e um imenso orgulho ao exercer uma função profissional, mesmo quando se tratava de vender casadinhos na escola, limpar o chão da loja ou enrolar fitas de linóleo num cabo de vassoura pra reaproveitá-las depois. Trabalhar permitiu-me dar sentido à minha vida e à minha energia, de forma que, não importasse o cargo, eu sempre via as pessoas com respeito porque sabia que, de alguma maneira, elas estavam dando sentido à vida delas também. Por isso lá em casa não havia ‘secretária do lar’ mas ‘empregada doméstica’, como meu pai era ‘empregado na Petrobras’ e minha mãe ‘empregada da escola’.

Ainda criança perguntava pra Conça porque ela não era lavadeira como as irmãs dela e ela repetia que preferia trabalhar em casas de família. E a vi abandonar o emprego de auxiliar de enfermagem no hospital porque lá 'o salário era pouco, o ambiente era ruim e as pessoas não se respeitavam'. Era muito claro que Conça não sentia vergonha de estar com a gente e nós, por nossa vez, fazíamos nosso papel de empregadores, valorizando o trabalho e deixando as maluquices de classe o mais fora possível da relação profissional. Almoçar com a gente, ter direito a uma siesta e controlar os horários de trabalho dela eram o mínimo e nunca me pareceu possível ser diferente.

É claro que sei: nem todas são como Conça, nem todos são como S. Rodolfo e D. Neide. Nem todo trabalho é bom, mas todo trabalho que não o escravo permite a quem o executa escolher como usar sua energia e, principalmente, pode ser uma ferramenta incrível para tirar a pessoa do lugar e fazê-la avançar. Isso já dá sentido a muita coisa, muita mesmo... Enfim, na minha cabeça, trabalhar sempre foi uma coisa boa e por isso me parece ser uma obrigação respeitar a todos os que estão honestamente fazendo o mundo girar.

Assistir a aprovação da PEC e toda essa discussão é como presenciar a uma novidade velha, porque na casa dos Azevedo Silveira nunca fora de outro jeito. Foi graças a isso que, bem egoisticamente, eu posso hoje respirar ALIVIADA por ter nascido em uma família em que essa ficha já veio 'caída', e que não estou somente agora, em pleno 2013, notando toda aberração que era essa relação com as empregadas domésticas em nosso país.

Com tantos vexames que já passei na vida, sorrio feliz por não ter que contabilizar mais esse. E cheia de amor, agradeço por termos escolhido o caminho certo naquela casa dos pouco numerosos (mas sempre atentos ao outro) migrantes sulistas.

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