JARDIM DOS ENCONTROS
Lugar de encontrar palavras, devaneios, imagens e sonhos plantados a esmo.

domingo, 5 de dezembro de 2010

Da série ENSAIOS: Duplo carpado de costas

Eu cresci na Pituba. Quem conhece sabe que ali reinam os prédios compridos, com crianças correndo em playgrounds. Muitos, muitos prédios, cada vez mais numerosos e mais próximos uns dos outros. 

Tinha um prédio que ficava a questão de metros da janela do fundo do nosso apartamento. Pelo menos é isso que eu sentia: que eram tão poucos metros que um salto mais potente me levaria até a janela do vizinho!

E nos dias mais difíceis, durante toda minha vida, lembro de pensar que se eu saltasse com a força necessária eu conseguiria o feito de me dependurar no, sei lá, 13º andar do Edf. Paraguaçu; tão pertinho ele afinal...

Eu ensaiei mentalmente esse salto imaginário durante toda minha infância e adolescência.

(...)

Bem; o fato de eu estar aqui, com meu cérebro inteiro DENTRO de minha caixa craniana já é o suficiente para dizer que eu nunca tentei o salto. Mas aquela sensação de que era possível ainda está aqui dentro. E levei essa certeza para tantas outras coisas, nas mais diversas áreas de minha vida.

Eu ensaio saltos mentais circenses todo-santo-dia. Foi assim para fazer Teatro, para raspar o cabelo, para começar e terminar coisas muito importantes, para abandonar pessoas... Eu sempre ensaio na cabeça trocentas-mil-vezes, em silêncio. E refaço os cálculos, e redimensiono os riscos, e penso nas piores consequências de um erro qualquer. Muda, quieta, com aquilo circulando sem parar entre olhos e alto do meu estômago.

Quando eu revelo meus planos para os mais íntimos, é porque eu já estou certa de que é possível. É apenas uma última verificação da solidez de minhas certezas.

E eis que, um dia... eu salto! Sem avisar a ninguém, sem convocar os repórteres, sem ajeitar o colchão lá embaixo. Apenas me lanço no vazio, embebida no sentimento de que o chão firme sob meus pés é já matéria obsoleta há muito tempo.

Amo meu bom-senso; o cultivo com colheradas generosas de doçura e palavras cuidadosamente gestadas. Ainda ofegante no pós-salto, tenho o hábito de me regozijar sem palavras, sorrindo por dentro ao constatar que sou mesmo capaz de cuidar de mim mesma. Auto-amor fruto de algo que aprendi desde cedo: não sou amável o suficiente para fazer os outros perderem tempo com excessivos cuidados comigo. Eu sempre, sempre, sempre, termino mordendo quem me alimenta, porque meu desejo de voar costuma ser mais extenso que a altura da gaiola. Mania de liberdade, que custa caro como poucas coisas entre o céu e a terra poderiam custar.

Mas, sabe? Eu só sei ser assim...

E por que falar disso agora? Simplesmente porque estou ensaiando um salto pavoroso para os de alma  pequena. Se um dia eu chegar à conclusão de que a distância ora calculada é mesmo humanamente possível, acho que dessa vez não vai restar nada do lado de cá, igual aquelas bases de lançamento que entram em chamas logo após a partida do foguete.

Minha angústia é essa, sabe?...  Debruçada sobre planos de mudança que vão me levar para uma outra dimensão completamente desconhecida, recupero todos meus registros de proficiência nos auto-cuidados para dizer para mim que, sim, eu consigo vencer mais essa.

(...)

Olhando o prédio ao lado, hoje, ansiosa com o futuro que estou traçando, eu acho a janela do vizinho tão próxima como nunca notei estar. Me espatifar no chão lá embaixo soa tão pueril que me envergonho de nunca ter tentado. E cheia de medos de mulher, me rio sozinha desse antigo medo bobo cultivado desde criança.

Um comentário:

  1. Ler é a mesma coisa que estar escutando você falar. Aliás, eu estou até vendo vc falar, com um jeito divertido de bater os dedos no peito: "...aquela sensação de que era possível ainda está aqui dentro", ênfase na palavra "dentro".

    Que seja incrível o seu salto, como é incrível e admirável o seu auto-amor. Auto-amor que amáveis ou não amáveis deveriam cultivar, pelo próprio bem e pelo bem da paciência alheia.

    Ansiosa pelas cinzas em que essa base de lançamento vai se tornar,

    Ana F.

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