Hoje um encontro me tirou o chão.
Não o encontro da manhã, que é curso leve de rio, que conduz tranquilo o olhar do passante. Esse ficou na sensação da manhã, no sorriso, no perfume. Veio comigo, mas ficou lá ao mesmo tempo; dialética do sentir.
Mas, então; hoje um encontro me tirou o chão. Na verdade me roubou o rumo, me descontrolou, me virou do avesso. Ele fora. Eu dentro. E os olhos se encontraram pelo vidro que ele molhou. Aí eu o reconheci; quase o tinha perdido no fundo da memória, porque o que mora em mim é apenas uma criança do lado de fora. Sempre fora, mas, sabe... nunca tinha sido tão fora quanto hoje. A gente se reconheceu, mas não nos sabíamos mais, porque aqueles que se conheceram há tantos anos se perderam num tempo de esperanças. Naquele tempo eu acreditava que um dia estaríamos os dois do lado de dentro. Que não haveria mais um fora tão mortificante quanto o desta tarde.
Eu parei naqueles olhos, que são tão duros que não deixaram nem o rastro reconhecível do garoto por debaixo daquele encarar de pedra. E foi minha vez de virar rocha diante do ex-menino-esfinge, que me mordia com os olhos boiando sem lugar.
A água sobre o vidro vira água sobre os olhos, escorre pelo queixo, molha o colo, as pernas, os pés; enlameou tudo com aquela dureza de pedra a rolar sobre minha memórias.
Eu lembro que sentamos juntos e conversamos lá atrás. Alef. Ele era um menino, era pequeno, e era loiro. E tinha um primo, Júnior, que era negro e dentucinho. Eu levava presentes e conversava sobre o como era bom dividi-los. E sentava com eles e escutava as histórias bobas de criança e as perguntas sabidas que só podem ser feitas por quem observa o mundo estando de fora dele. Eu amava aqueles meninos dentro do que eu poderia amar. E sonhei tanto e vibrei tanto e emanei e desejei e projetei e fiz tanto quanto sabia fazer para que existisse, mesmo que num plano distante, uma energia de amor direcionada àqueles dois pequenos.
Dois pequenos... Um deles encontrei hoje, já meio médio meio grande. Ele tinha uma espécie de bigode de adolescente, e ele me reconheceu com os olhos, mas não sei se dentro da cabeça. E ele molhou o vidro que congelou nossos olhos, e meus olhos então que se molharam de dor como se tivesse vendo o meu filho morto dentro daquele rapaz. (...) Não é vaidade do que roubaram 'de mim', mas dor lancinante pelo que roubaram dele! Está errado... Eu queria sair dali e gritar por entre os carros e contar pra todo mundo quando era eu quem levava carros de plástico para a gente sonhar um pouco juntos. Está errado e não há mais como fazer isso gritar dentro da gente!
(...)
Hoje esse encontro me tirou o chão. Ainda estou chorando, não posso negar. Tá sangrando aqui dentro e não sei como fazer estancar, meu Deus. Vontade apenas de engolir aquele rapaz e gestá-lo e pari-lo de novo pelo olhos, só pra nos dar a chance de recomeçar por um novo começo.
Mas eu não posso.
Hoje um encontro não me tirou o chão. Na verdade, hoje um encontro me tirou um pouco de tudo aquilo que morava na parte mais bonita de minha memória...
...nó na garganta pela sensação, pelo texto e pelo que os caminhos roubam.
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