Lembro de um dia acordar no meio da noite e ver minha mãe ao pé da cama contando meus incontáveis hematomas. Sempre fui de ficar marcada e a surpreendente cifra de 87 arroxeados na minha pele tão branca não foram, de fato, surpresa para mim.
Muitas noites passaram e aquela cena nunca se repetiu, mas as marcas se acumularam num total que perdi de vista há tanto tempo... MarcaS, num plural eterno e repetitivo.
(...)
Ao encontrar um recente afeto, noto que ele nota tão rápido minha imensa mancha roxa na perna que termino por ficar completamente sem-graça. E mesmo que aquilo vire piada no segundo seguinte, a vontade que tenho é de dar um salto e confessar a ele e a todos: aquelas marcas vêm de dentro!
Mas eu me calo, meio envergonhada, porque é cedo demais para exibir-lhe as entranhas.
(...)
Os encontros são muitos na vida; profusões diárias de trocas de informações, de desejos, de experiências, de sorrisos, de ações. Adoro gente, mesmo quando igualmente detesto cada um. Eu gosto, realmente, de me embolar na vivência de alguém e ver daquele contato nascer uma nova camada de entendimento das coisas à minha volta. Num mundo que comporta tanta diversidade, não haveria de ser possível nem mesmo a um incansável Odisseu a descoberta de todas as terras que se escondem do lado de dentro daqueles que encontramos. Por isso eu gosto tanto de abrir minhas portas, meus olhos&boca&ouvidos e deixar o outro desbravar os meus continentes desconhecidos para, em seguida, convidar-me a desbravar-lhe os seus. Adoro encontros. Adoro.
E depois de tantos caminhos reais e imaginários desbravados desde sempre, eis que me encontro com um desconhecido que morava tão perto que nunca poderia prever-lhe a existência. Como tão perto e tão longe?, era a única questão que martelava a cabeça nos primeiros instantes. Mas fui assim mesmo, com a pergunta ecoando dentro do juízo, e terminei por abrir-lhe minhas portas, deixei-o entrar, sair, perguntar, revistar, rir, descobrir, levar o que quisesse. Foi tudo tão rápido, e tão simples, e com um interesse tão sincero que, ao invés de tranquila, fiquei honestamente apavorada. Adorando aquele turista em minhas terras fiz a mais boba das escolhas e, ao invés de relaxar, achei de me distrair consultando o antigo livro de assinaturas com a lista de todos os recentes visitantes. (!) Pulsava naquela caixa de lembranças tanta confusão e desafeto e medo e angústia e dor que quase bradei ao distraído visitante que fosse embora antes de incluir ali o seu nome. Por um instante o quis longe de mim, mas uma risada no ar terminou por me tranquilizar pelo menos até o fim da visita.
E, ufa, foi tudo ótimo. E eu me comportei como uma boa anfitriã. E me despedi na porta. E o vi partir. E fui para frente do espelho. E me despi. E encarei meu corpo. E ali vi tantas marcas que não haveria tempo suficiente numa vida para contar todas elas. E me horrorizei de tal modo com aquela visão que chorei de-ses-pe-ra-da. Notei enfim o quão machucada eu estou, a ponto de não reconhecer a tranquilidade quando ela me bate à porta. Perdi os olhos para o afeto, desconheço a doçura, fiquei surda para o silêncio. Emburreci da alma, de certo modo.
E me vi tão sensível ali, sozinha, com aqueles hematomas me cobrindo inteira que senti vergonha. Mil vezes mais do que quando ele apontou-me a imensa marca na coxa.
Em geral eu tenho apego a minhas cicatrizes, porque elas são parte do eu sou. São minha construção mais intrínseca, totalmente inalienáveis. MINHAS. Mas, de algum modo, o que foi trazido pelos olhos do moço-bonito é da matéria da tranquilidade, da paz, da calmaria, da maciez. E aquela ranhura toda sobre mim terminou por perder o sentido e me fez sentir excessiva de alguma forma.
Me perdi, enfim.
Estou com vontade de correr, mas fico. Depois de muito, muito, muito tempo, acho que é melhor me manter onde estou e com as portas abertas a esta ilustre visita. Apavorada, admito, mas disposta a acolher essa imensa novidade.
(...)
Eu, ser do grito, começo a desejar ser alguém do sussurro.